Quando apontam o oprimido como seu próprio opressor
Na cidade de
Charlotte, Estados Unidos, a pastora negra Makeda Pennycooke pediu para que “apenas pessoas brancas”
trabalhassem na recepção de fiéis, alegando a “importância da primeira
impressão” e justificando que a
igreja quer “o melhor do melhor nas portas da frente”. Lamentável! Mas não vou entrar na discussão de como
instituições religiosas cristãs perpetuam e reforçam o racismo, o machismo e
outros ismos no mundo.
Nas últimas
semanas, o que eu ouvi e li — inclusive nos comentários dessa matéria — sobre
como existem “negros racistas” que reproduzem discursos e
estereótipos também racistas não está nos hieróglifos egípcios (muita
gente não sabe, mas o Egito fica no continente africano). Concordo que há
pessoas negras que reproduzam discursos racistas. Infelizmente, é esperado que
elas existam dada a configuração escravocrata e racialmente desigual na qual se
construiu o Brasil.
“Peraí, mas
a pastora não é brasileira”, você
poderia afirmar. Correto! Ela não é, mas consigo visualizar essa cena
acontecendo explicitamente aqui, em terras tropicais, num templo
neopetencostal — e de modo mais mascarado em outras instituições religiosas ou
não. Por mais que as relações étnico-raciais no Brasil e nos EUA tenham se
configurado de forma diferente, a reprodução de discursos racistas por pessoas
negras é algo que acontece nas duas nações. O que
não se pode afirmar é que essas pessoas negras são racistas. Elas não são. Afinal, não há relação de ganho ou de benefícios
quando um negro oprime a si mesmo ou ao seu par. Explico melhor.
Lembremos que
quem criou esse cenário de opressão não foi o povo preto. Mas sim os brancos
que, durante séculos, estruturaram tão bem a inferiorização do negro a ponto de
ele mesmo estigmatizar seu par e seu grupo. Um exemplo declarado dessa construção
é a carta-tutorial
escrita em 1972 por Willy Lynch, proprietário de escravos no Caribe
conhecido por manter controle absoluto sobre os corpos negros que foram
colocados em suas mãos (para saber mais, aqui). O documento ensina como deixar os escravos submissos e
dominados “Verifiquei que entre os escravos existem uma série de
diferenças. Eu tiro partido destas diferenças, aumentando-as. Eu uso o medo, a
desconfiança e a inveja para mantê-los debaixo do meu controle (…) Deveis usar
os escravos mais velhos contra os escravos mais jovens e os mais jovens contra
os mais velhos. Deveis usar os escravos mais escuros contra os mais claros e os mais
claros contra os mais escuros”. Por fim, o autor completa “Se fizerdes intensamente uso
delas por um ano o escravo permanecerá completamente dominado. O escravo depois
de doutrinado desta maneira permanecerá nesta mentalidade passando-a de geração
em geração”.
Imagem de pichação racista na UFBA “Negro só se for na cozinha do RU, cotas não" |
Foram (e são)
séculos de doutrinação e mentalidade racistas passadas de geração em
geração. No campo simbólico, os discursos e estereótipos
racistas são algumas das ferramentas desse processo de dominação – ambas
contribuem para delimitar e limitar o espaço do povo negro na sociedade. Elas (essas ferramentas) reduzem o indivíduo-alvo a meia
dúzia de características que vão, além de estigmatizá-lo, determinar o lugar
onde ele pode se construir enquanto ser social. Isto é, dizer o que o oprimido
deve ou não ser, como deve ou não se portar e até onde pode chegar. No caso da
pastora, pessoas negras não podem ser recepcionistas, não podem estar na
fachada da igreja porque isso não é o melhor. O “melhor do melhor” é
sinônimo de ser branco. No
Brasil não é diferente: nas capas de revistas não há preto, nas
novelas não há preto, nas dirigências de órgãos e instituições não há
pretos... Também porque aqui branco é sinônimo de “melhor do melhor” e esse
é quem tem que estar nos espaços de destaques, de frente e de contato com o
outro, enquanto o preto fica à margem, nos bastidores.
É preciso entender que o processo de dominação foi
tão bem introjetado que os próprios oprimidos podem sim reproduzir e contribuir
para a opressão que o dominante construiu, mas não tiram benefícios como os
reais opressores. A pastora Pennycooke não é racista, tal como os negros
apontados como racistas nas últimas semanas. Para os tacharem de racistas, seria preciso que houvesse um dominante que
fosse beneficiado às custas do dominado, como o proveito que branco tira do
negro que ele historicamente inferiorizou. No caso apresentado, Pennycooke,
enquanto pessoa negra, não teve ganho para si mesma ou para o grupo étnico ao
qual faz parte. Muito pelo contrário: ela prestou um desserviço, contribuiu
para a legitimação de que o negro não deve ocupar certas posições e reforçou a
suposta supremacia branca em relação a outras etnias que vive no imaginário da
maioria da sociedade.
Isso o que Pennycoke fez e, com certeza, que outros
negros fazem não deve servir de estopim para racistas
legitimarem seu discurso a partir do “não estou sendo preconceituoso se
o próprio negro é diz/faz isso ou aquilo”. Mas deve sim ser
desconstruído; entendido como um sistema que colocou suas vítimas contra elas
próprias, fazendo-as comprarem os discursos do seu algoz; e ensinado o quão
prejudicial é para o povo negro a reprodução de falas racistas.
E vou além: para os que
só veem “negros sendo racistas”, afirmo que, nesse exclusivo
apontamento do oprimido como seu próprio opressor, há mais um tentativa
desesperada de se livrar da responsabilidade pelo próprio racismo e manter
o status quó de opressão do que fazer um mundo menos
intolerante — não cola!
Fonte: Higor Faria é preto,
publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no //medium.com/@higorfaria"
Nenhum comentário:
Postar um comentário