Por Christen Smith com tradução de Viviane Santiago da Silva
Criar
e educar crianças negras – de sexo masculino e feminino – na
boca de um dragão racista, sexista e suicida é perigoso e incerto.
Se eles/as não podem amar e resistir ao mesmo tempo, eles/as
provavelmente não sobreviverão. E em ordem de sobreviver eles devem
se desprender/liberar. Isto é o que mães ensinam – amor,
sobrevivência… (Audre Lorde, “Man Child” in Sister Outsider,
1984).
Quando
eu estava grávida de você, eu tinha certeza de que você era uma
menina. Mesmo quando um/a sábio/a atrás do/a outro/a olhava
diretamente para a minha barriga enorme e redonda, balançava a
cabeça e me dizia: “Não, isso é um menino”, eu não acreditava
neles. Eu não poderia me imaginar tendo um menino. Menininhos nunca
foram uma parte das minhas fantasias de maternidade. Eu sempre me
imaginei como mãe de menina. Uma menina para ser exata: exatamente
como minha mãe, a mãe da minha mãe e a maioria das minhas tias.
Então, quando seu pai e eu fomos fazer nosso ultrassom de cinco
meses de gravidez para descobrir o seu sexo e ter certeza de que você
estava bem, eu estava numa jornada de confirmação e não de
descoberta.
Eu
deitei naquela conhecida mesa de falso couro do médico. Levantei
minha camisa e esperei para que a geleia gelada fosse aplicada. Nós
dois estávamos tontos de ansiedade. Nas nossas mentes, nós não nos
importávamos se você era um menino ou uma menina. Era a excitação
de atingir outro marco na gravidez que era eufórico. O médico
começou a descrever seu batimento cardíaco, sinais vitais, contar
dedos dos pés e das mãos, tudo enquanto nós observávamos você,
nadando pacificamente, na tela de projeção. Já treinado na
teatralização do processo, o médico esperou até o finalzinho da
consulta para perguntar se nós queríamos saber o seu sexo. Nós
inspiramos e dissemos: “Sim”. Com olhos brilhantes da certeza de
nosso entusiasmo, ele disse: “Tá vendo isso aqui, isso é um
pênis, e ali está o escroto dele, você está gerando um menino!”
Minha respiração parou momentaneamente e calafrios percorreram meu
corpo. Eu forcei um sorriso. Eu já amava você profundamente, mas
saber que você era um menino e não uma menina me paralizou de medo.
Quando
estávamos saindo do consultório do médico, seu pai olhou para mim
e perguntou: “Você está bem?”, como se ele soubesse que minha
cabeça estava girando com as emoções que eu estava apenas
começando a entender. Eu forcei um outro sorriso, respondi: “Sim,
eu estou bem”, e fui ao banheiro para me recompor. Eu lavei meu
rosto e tentei sair dessa sensação de vertigem que eu estava
sentindo. Mas eu não podia afastar a dor surda de tristeza que eu
sentia e não podia entende o porquê. A boa feminista em mim
repreendia: “Sexo é uma construção social. Recomponha-se.” Mas
a sensação fria permanecia. Quando eu estava saindo da clínica
para a calçada ensolarada, a sensação fria se transformou em
pânico. Envergonhada, eu tentei esconder isso de todo mundo: seu
pai, seus avós e meus amigos. Eu não queria que ninguém soubesse
que saber que você era um menino me deu uma sensação de pavor que
eu não podia entender ou explicar. Eu comecei a fazer pequenos
comentários para a nossa família que davam uma pista do meu
sofrimento emocional. Eu poderia dizer coisas como: “Eu não tenho
a menor idéia sobre o que fazer com um menino”, ou “Nós apenas
não temos nenhum menino em nossa família”, mas minha mente não
podia ou não permitia que eu colocasse em palavras o indizível
terror que eu sentia.
Eu
estava em estado de choque e demorou muito para que eu entendesse o
porquê. Foi somente em fevereiro de 2012, depois que você nasceu,
essa bela e extraordinária pessoa que você é, e já estava nesse
mundo por quase um ano, que eu comecei a confrontar meu segredo
vergonhoso. Esse foi o dia em que eu soube que Trayvon Martin tinha
sido baleado e assassinado, e ouvi sobre as circunstâncias da morte
dele. Quando eu ouvi essas notícias, eu sentei e chorei. Eu chorei
por ele. Eu chorei pela família dele. Eu chorei pelas pessoas negras
em todos os lugares. Mas, acima de tudo, eu chorei por você.
Eu,
uma mãe negra de um menino negro, entendia e conhecia a dor que
Sybrina Fulton (a mãe de Trayvon Martin) estava experienciando
através de um intenso sentido de empatia diaspórica que
atravessava/cruzava o tempo e o espaço. E eu estava petrificada pelo
pensamento de perder você, ou ser mais uma mulher negra perdendo
mais um filho negro. Novamente, outro assassinato de outra criança
negra mal interpretado como um homicídio justificável me forçou a
a confrontar o pânico secreto e tendencioso com relação ao gênero
sobre maternidade negra que eu tinha carregado comigo desde que eu
era uma criança. Por mais irracional que isso pareça, a descoberta
de que você era um menino me fez sentir como se você estivesse
recebendo uma sentença de morte. Eu sabia naquela época, como eu
sei agora, que meninas negras também são desproporcionalmente
impactadas pela violência policial, e eu também sabia, como
JamilaAisha Brown observa, que essa realidade é invisível e
silenciada. Nós nunca devemos esquecer Ayana Stanley-Jones, Reika
Boyd, Malaika Brooks, Jaisha Akins e Frankie Perkins, mulheres negras
assassinadas e imencionavelmente prejudicadas pela polícia, cujas
vidas relembram a sempre tão frequente realidade de violência
estatal contra as mulheres negras nos Estados Unidos. E a realidade
da violência policial contra pessoas transgênero/a é literalmente
inconcebível na nossa socieade, onipresente, mas invisível para a
maioria dos que não são parte dessa comunidade.
Entendendo
tudo isso, e reconhecendo as óbvias contradições inerentes ao meu
medo, eu ainda não conseguia afastar o sentimento de tristeza e
desamparo associados ao fato de trazer você a este mundo. Na minha
mente traumatizada e irracional, maternar meninos negros era um luto
iminente e a empatia que eu sentia por mulheres como Sybrina Fulton,
Mammie Till e Laura Nelson tornou isso ainda mais nítido. Mas meus
sentimentos não se originaram/nasceram apenas no/do silêncio
hegemônico que blinda a real letalidade da supremacia heterrosexista
e patriarcal contra mulheres negras e pessoas negras transgêneras.
Eles também se originavam dos crus e dolorosos sentimentos de amor
que eu tenho por você.
Silenciosamente
e quase inconscientemente, por anos, eu tinha desenvolvido um senso
de vida e amor que estava sendo moldado por minhas preocupacões com
os assassinatos sem sentido de crianças negras que acontecem
diariamente nos nossos dois lares: Os Estados Unidos e o Brasil.
Entendendo, pesquisando e escrevendo sobre a morte negra, eu me vi
paralisada com o medo da perda. Antes de eu me tornar a mãe, eu
podia compartimentalizar aquele sentimento e distanciá-lo. Porém,
depois que eu me tornei mãe, eu não podia mais distanciar as
realidades de violência com as quais eu tinha começado a viver nos
meus pensamentos e reflexões diárias. Mesmo quando você crescia no
meu útero, eu incoscientemente comecei a tritutar estatísticas na
minha mente, numa tentativa de criar um cenário que de algum modo
pudesse fazer sua sobrevivência mais provável. Fundamentalmente, eu
amava tanto você que eu não podia suportar a ideia de você
possivelmente ser tomado de mim pelo “dragão suicida” que é o
nosso mundo. Minha esperança de que você fosse uma menina era meu
desespero em acreditar que, de algum modo, existiria uma maneira de
bater as probabilidades do jogo de roleta russa que é a vida de
pessoas negras nas Américas.
Depois
de dedicar anos me posicionando pessoalmente e politicamente contra a
violência policial (e seu parente próximo, o vigilantismo) contra
pessoas negras nos Estados Unidos e no Brasil e traçando a
genealogia da tortura e da morte da população negra a partir da
escravidão no hemisfério americano até linchamentos, grupos de
extermínio e policiamento nas duas nações, eu passei a aceitar que
o mundo toma meninos negros de suas mães, frequentemente na frente
dos olhos delas, sem nenhum motivo, sem razão, ao caso e ainda assim
com uma intenção cruel.
Eu
conheci as mães de Canabrava no I Encontro Popular pela Vida e um
Outro Modelo de Segurança Pública em Salvador, Bahia, em 2009, após
uma centena de policiais civis e militares do batalhão de operações
especiais terem invadido o bairro delas e executado sumariamente
cinco jovens homens daquela comunidade. Três dos jovens, Edmilson
Ferreira dos Anjos (22), Rogério Ferreira (24) e Manoel Ferreira
(23) eram irmãos. De acordo com a irmã deles, a polícia invadiu a
casa deles, puxaram a mãe deles pra fora e atirou nos meninos
enquanto eles estavam assistindo televisão, no sofá e dormindo no
quarto. Eu conheci Debora Silva, das Mães de Maio, cujo filho foi
uma das 493 pessoas que a polícia matou em São Paulo em 1996, em
retaliação às revoltas do PCC. Eu conheci Deise, uma das milhares
( sim, milhares) de mães negras cujos filhos foram assassinados pela
polícia no Rio de Janeiro nos últimos dez anos, que teve que
contratar um investigador particular para encontrar o corpo mutilado
de seu filho após ele ter sido assassinado. Nos olhos delas, eu vi a
morte em vida que acontece quando a alegria de sua vida é sugada
pela supremacia branca. O mesmo olhar eu já tinha visto nos olhos de
Sybrina Fulton, nos olhos de Mamie Till e nas fotos de mães, irmãs,
filhas e parceiras, longe, nas sombras dos linchamentos nos Estados
Unidos, esperando para recolher os restos mortais dos seus entes
queridos. Eu lembrei da tia que você nunca conheceu, que perdeu seus
meninos para a violência policial e a violência das ruas, mas que
tinha mantido suas meninas. Porque eu conhecia mais mulheres negras
que tinham sobrevivido à violência policial (mesmo que as suas
vidas tenham se tornado uma morte em vida), eu ansiava que você
fosse uma menina.
Desde
que você nasceu, eu tenho lutado com o terror que eu senti naquele
dia em que eu descobri que você era um menino e agora que seu
irmãozinho está aqui, minha jornada para superar esse terror tem se
tornado mais intensa. Ainda assim, lindamente, misticamente, você
tem me ensinado a desmentir os meus medos e apenas amar você,
reconhecendo o que Audre Lorde disse muitos anos atrás: “Se [você]
não pode amar e resistir ao mesmo tempo, [você] provavelmente não
sobreviverá… Para sobreviver, crianças negras na América, devem
ser criados para ser guerreiros”(1984:74-75). Então, minha
promessa a você é criar você como um guerreiro, porque essa é a
única coisa que eu posso fazer. E entender que este é o meu jeito
de amar você em cada passo do caminho. Cada dia que você vive e
ama, sorri e gargalha, ri e chora, nos seus olhos brilhantes, você
carrega a felicidade de Olorum; e eu sou relembrada de que você
voltou para lutar mais um dia. Você e seu irmão não são meus, mas
um dia vocês vão crescer e se tornar ferozes guerreiros por verdade
e justiça.
Christen Smith é
uma mãe, escritora e pesquisadora que atualmente trabalha como
professora de Antropologia e Africa e Diáspora Africana na
Universidade do Texas em Austin.O trabalho dla explora as políticas
de performance, raça, violência e corpo nas Américas. Ela tem
publicado ensaios sobre performance, formação racial do Brasil,
violência policial e políticas de geografia em Salvador e o corpo
coletivo negro feminido transnacional. Desde 2001 ela vem
colaborando com militantes negros/as em Salvador, na luta para
denunciar violência policial e os grupos de extermínio contra a
comunidade negra no Brasil.
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