Por CELUY ROBERTA HUNDZINSKI *
Enviado por: Antônio Ozai da Silva
O diálogo cultural africano, travado na obra Kirikou
e a Feiticeira, de Michel Ocelot, pode ser interpretado numa dimensão mais
ampla, no tempo e no espaço, estendendo-se até nossos dias e a todos os
continentes. Nas personagens principais, podemos observar as conseqüências dos
atos masculinos incutidos nas mulheres. Temos duas visões divergentes (da mãe
de Kirikou e da feiticeira Karabá) que, porém, apontam para o mesmo objetivo: a
afirmação feminina enquanto indivíduo livre e independente.
Considerando a visão de Michelle Perrot, em sua obra
"Les femmes et les silences de l'Histoire" [1], observamos que a
História das mulheres foi sempre contada sob o ponto de vista do homem. O que
se tem de menos influenciada é a oralidade privada, domínio em que as mulheres
sempre puderam interferir e o fizeram de maneira marcante junto aos filhos e às
crianças em geral [2]. "A memória das mulheres é verbo. Ela está ligada à
oralidade das sociedades tradicionais que lhes confiavam a missão de narradoras
da comunidade do vilarejo." (PERROT, 1998, p. 17). [3]
Constataremos isso na mãe de Kirikou, primeira
personagem da qual falaremos. Algumas vezes definida como dócil, silenciosa e,
justamente por isso, fraca é, na verdade, a mulher que define todo o enredo, a
que produz o Herói, não somente por tê-lo gerado, mas pela maneira como se
refere a ele.
Desde o momento do parto, a mãe ordenou que ele
nascesse e se lavasse sozinho, dando mostras de que o Herói, para sê-lo,
precisa ser independente. A própria independência que ela adquirira, mesmo
fazendo parte de uma sociedade com papéis estritamente bem definidos entre o
homem e a mulher. Daí, podemos extrair, também, que vivendo sozinha e seu
marido tendo sido "roubado" pela feiticeira, ela desenvolveu atitudes
ditas "masculinas", como a administração de sua tenda, de seu filho,
sem interferências diretamente externas.
Poderíamos dizer que ela não se preocupava com a
opinião alheia. O modo com que pensava e agia demonstrava a inteligência e a
sapiência obtida pela experiência de vida. Era preciso sobreviver, tornar-se
uma Heroína, com todas as características de uma mulher forte, contrariamente
ao que se observa, por leigos, num primeiro olhar.
[Veja também: Plano de aula - Kiriku e a Feiticeira]
Assim, a personagem identifica-se com as mulheres do
dia-a-dia, ditas "comuns", que cuidam da casa, preparam a comida,
educam os filhos com sabedoria, calma, interiorizando os acontecimentos para
que deles tirem a lição de vida. Sensatas e decididas. Mulheres abandonadas
pelos cônjuges, viúvas, sozinhas ou, ainda, as "viúvas de maridos
vivos". [4] Todas que, de uma forma ou de outra, não entregam-se às
adversidades, mas as controlam para que sejam vencedoras.
Até na hora do nascimento de Kirikou, ou do instante
em que pensou que ele morreu, o semblante da mãe era sereno e firme. Além
disso, a primeira pessoa de quem ela falou para o filho foi de Karabá, a
feiticeira, mostrando que não temia os inimigos e insinuando que ele era o
"enviado" para salvar a aldeia. A idéia geral é que ele tem uma
missão, podemos compará-la à de Jesus [5], onde a reação materna não difere
muito da de Maria, no intuito de passar a idéia de que as mães devem, sempre,
usar de sensatez, sabedoria e aceitação, sem esquecer, ainda, a preciosidade do
silêncio.
Kirikou, logo após a vir ao mundo, questionou a mãe
sobre seus familiares, todos homens, não interessou-se pelas mulheres, já
instigando o conflito da obra: os homens que partem combater a feiticeira, são
"comidos" por ela e nunca mais retornam aos seus lares.
A fortaleza e a capacidade de conduzir da mãe são
inabaláveis, foi ela quem o informou sobre tudo o que acontecia na aldeia
(transmissão da cultura geral pela oralidade) e quem lhe mostrou os problemas,
como a fonte maldita. Ela o levou consigo, na ocasião da entrega do ouro à
feiticeira, e não interferiu quando ele questionou a "Venerada",
ainda que outras mulheres os reprovassem. Mesmo no momento em que ela estava
inclinada, por terra, defronte ao poder, demonstrou, por seu porte e
movimentos, um ar superior em sabedoria. Indicou, também, o caminho que devia
ser traçado até e além dos domínios de Karabá.
As mulheres do vilarejo não tinham mais esperança e
mostravam-se rendidas [6], somente a mãe de Kirikou não se deixava levar, no
entanto, sugeriu isso em silêncio, revelando-se tão grande e imponente quanto a
"Poderosa".
Observamos, claramente, no decorrer da obra, o
sentido sexual translúcido nas ações. Antes de partirem para entregarem as
riquezas, o bebê pede à mãe para ir junto, ao que ela responde: "– Você já
é como os homens: quer ver Karabá, a feiticeira." Demonstrando ser algo,
estritamente, normal. Anteriormente, ele fora ao encontro de seu tio, com a
intenção de ajudá-lo. A mãe, evidenciando que isso já estava traçado (porque
ele é um homem) e querendo fazer valer o livre arbítrio, não o impediu.
Não obstante, quando o pequeno encontrou o tio,
último homem da aldeia, que caminhava para encontrar-se com Karabá, escutou a
afirmação de que o que iria acontecer não era algo para as crianças. É possível
interpretarmos esse acontecimento como o ato sexual, que é o que se pode
entender nas entrelinhas de todo o texto. Kirikou mostrou ter compreendido isso
quando, face ao monstro da fonte, pensou em pedir ajuda ao tio, mas
reconsiderou sua idéia, afirmando que ele não podia passar pela "porta
estreita" para entrar na gruta, porque ele era grande, isso devia ser
feito por alguém que é pequeno. Evidentemente, só uma criança livre de desejos
poderia vencer o mal.
É num momento de repouso do menino que a mãe
instigou uma reflexão sobre a maldade e o poder, fazendo com que o filho conhecesse
a idéia estrutural e política da sociedade e da humanidade, em que,
normalmente, o mais poderoso oprime fazendo com que os outros sofram.
Diante deste contexto, era preciso um coração puro,
uma criança, para não ceder aos encantos de tal dama. [7] A mãe acreditou na
capacidade de Kirikou, em sua astúcia, pois, além de tudo, ela o fizera assim e
sabia que a união de um coração imaculado e da sabedoria dos anciãos (no caso,
seu avô) podia fazer "milagres". Foi, justamente, o portador de tal
sabedoria que veio desmistificar a personagem de Karabá, possivelmente, porque
ele havia ultrapassado a idade onde os desejos carnais falam mais forte,
podendo, desta forma, ver as coisas de maneira clara, tais quais elas são.
Mesmo quando afirmou que ela era malvada, houve uma explicação para o fato.
Outro tipo de mulher, apresentado na obra, é a que
se diz esperta, mas não se mostra muito inteligente. Essa personagem aparece
sempre dando opiniões incabíveis, maus conselhos, reclamando, ou tentando
enganar, como no caso da recolhida do ouro. Entretanto, foi ela quem anunciou a
boa nova de que a água voltou, confirmando a característica de quem fala muito:
nem sempre fala coisas sábias ou aproveitáveis, mas está, constantemente, bem
informado para poder passar adiante.
Tal personagem apresentou-se no primeiro lugar da
fila, no momento de entregar o ouro para a feiticeira, contrariamente à mãe do
Herói, posicionada em último lugar. Essa imagem simboliza a humildade, vista
como fonte de sabedoria, contra a falsidade de quem está enganando mas não quer
ser desvelada. "Assim, pois, os últimos serão primeiros e os primeiros
serão últimos." (Bíblia Sagrada, Mat. 20, 16).
Finalmente, o terceiro tipo de mulher, é Karabá.
Qualificada, nas falas, como esplêndida, venerada e honrada, porém,
mostrando-se autoritária, ditadora e malvada. Quanto ao físico, era bonita e
vaidosa, cheia de ornamentos. Exatamente as características atribuídas às
prostitutas, que devem estar sempre belas; são descritas, pelos amantes, como
esplêndidas e honradas, mas pela sociedade em geral (ou mesmo por eles, quando
encontram-se em público), são tachadas de malvadas por "roubarem" os
homens das mulheres, e de "autoritárias" porque fazem deles "o
quem bem querem".
Temida, robotiza os homens, fazendo deles objetos
que obedecem. Kirikou podia afrontá-la, pois sabia que, sendo pequeno, seria
capaz de entrar onde nenhuma outra pessoa poderia. Ademais, ele não a temia
estando ciente de que quanto mais o povo tinha medo, mais ela tornava-se
poderosa. Não se pode dizer que ele é uma criança, mas que se fez assim para
cumprir seu desígnio. Como prova, temos sua transformação no final da história.
Se considerarmos o fundo sexual da temática, podemos
afirmar que ela não gostava das crianças porque sabia que seu poder sobre elas
era limitado; da mesma forma, detestava as mulheres, pois julgavam-na
atrapalhando suas relações com os homens. Desprezava os seres masculinos, por
lhe terem "feito mal": temos, aí, a idéia implícita de que fora
violentada. Os homens "fincaram-lhe um espinho" que a fazia sofrer
imensamente, ao ponto dela não ter coragem de pedir para alguém arrancá-lo.
Dificuldade comparável às que os seres humanos têm para tocar nas feridas
emocionais.
O avô explicou que ela não era uma feiticeira, mas
alguém que tem uma reação provocada por uma ação. Essa reação não era boa
porque a ação também não fora. A partir do momento em que ela se livrou do
sofrimento, pôde voltar a ter bons sentimentos, uma mulher livre, sem problemas
com o sexo oposto.
Para que isso acontecesse, temos um ponto importante
a considerar: a cólera de Karabá diante do roubo das jóias implicou na decisão
de primeiro recuperá-las, para depois preocupar-se com Kirikou. Esse ato deu
forças à futilidade, à vaidade e à avareza, sentimentos que a emboscaram.
Ao livrar-se do mal, ela gritou, com tal intensidade
que se fez escutar na aldeia. Esse grito representa o de todas que foram, de um
jeito ou de outro, oprimidas pelos homens, violentadas, que carregaram, durante
anos, um espinho nas costas, revoltando-se, às vezes, mas sem ter a coragem de
dar o verdadeiro grito de liberdade. Aquele que veio romper o silêncio das
mulheres e transformar a opressão, o ódio, em amor. Elucidando a vitória, ainda
que depois de muita angústia.
Foi, nesse momento, que Karabá encarnou a verdadeira
feiticeira, ela não tinha poderes sobrenaturais, todavia, o feitiço era o amor
e, através dele, por um beijo, transformou Kirikou em um homem. Antes, contudo,
ela resistiu, dizendo que sendo ou não feiticeira, não seria empregada de
ninguém. O apaixonado contestou dizendo que não faria dela uma empregada, e ela
retruca falando que todos os homens dizem isso antes de casar. O menino a
convenceu de que era diferente dos outros homens e cresceu, indicando, nada
mais, nada menos, que perdeu sua virgindade e que, pelo amor, pôde curá-la da
dor, ensinando-lhe como é uma relação sadia entre sexos opostos. Como
recompensa ou, simplesmente, conseqüência deste amor que fez as flores
desabrocharem, ela "cuidou" dele, ornando-o, e ele a apresentou aos
seus.
O último conflito foi a aceitação na comunidade, da
mesma forma que é difícil para uma prostituta, ou qualquer mulher que fuja dos
padrões estabelecidos pela sociedade, ser aceita. As pessoas não reconheceram o
filho da aldeia e a mãe retomou seu papel vindo identificá-lo. A decisão do
final feliz foi dela. As outras mulheres demonstraram sua revolta tentando
matar Karabá e, somente, pararam quando viram os homens se aproximando. Elas
recuperaram o que estava perdido. Os "filhos pródigos" voltaram para
casa favorecendo o retorno da paz.
Concluiremos dizendo que as mulheres tiveram um
papel fundamental durante toda a obra e, sobretudo, no início e no final da
narração, fazendo com que as ações fossem, sutilmente, propiciadas por elas. Mãe
e feiticeira foram o segmento uma da outra, completaram-se. Kirikou foi,
meramente, o laço entre as duas e foi isso que o transformou em Herói. Ele
libertou todos os outros homens porque "conquistou" para si, Karabá.
Referências
Bíblia Sagrada. Ed. Ave-Maria, 131ª Edição, São
Paulo, 1999.
HUNDZINSKI DAMASIO, Celuy Roberta. "Identidade,
Igualdade, Diferença – o olhar da história" In: Revista Espaço Acadêmico,
n° 79, dezembro de 2007.
HUNDZINSKI DAMASIO, Celuy Roberta. "Mulheres
Fazendo a História" In: Revista Espaço Acadêmico, n° 58, março de 2006.
OCELOT, Michel. Kiriku e a Feiticeira. Ed. Paulinas
Multimídia. Cultifilmes França/Bélgica, São Paulo, 2002
PERROT, Michelle. Les femmes ou les silences de
l'histoire. Paris, Flammarion, 1998.
* CELUY ROBERTA HUNDZINSKI é DEA em Filosofia pela
Universidade Paris X – Nanterre; Master II na Sorbonne; Tradutora e Assistente
de Educação. Publicado na REA, nº 82, março de 2008, disponível em
http://www.espacoacademico.com.br/082/82damasio.htm
[1] A resenha deste livro, intitulada Mulheres
Fazendo a História, pode ser encontrada na Revista Espaço Acadêmico – n° 58 –
março de 2006. Também pode ser consultado o texto Identidade, Igualdade,
Diferença – o olhar da historia na REA – n° 79 – dezembro 2007.
[2] Daí a origem da fama da mulher como
"faladeira" ou, até mesmo, "fofoqueira".
[3] Tradução nossa.
[4] Esposas daqueles maridos que existem mas nunca
estão presentes.
[5] Essa semelhança com a história bíblica
confirma-se mais ao final do filme, quando o pequeno engana a serpente
"vencendo-a".
[6] Uma mulher, no episódio da canoa, deixa a faca
cair (é Kirikou quem a pega pra ir salvar as crianças). As mulheres, em cenas
similares, sempre mostram-se inertes diante das maldades.
[7] Podemos observar, também, que o velho habitante
da aldeia, apesar de temeroso, não está sujeito à Karabá, provando mais uma vez
que este "feitiço" pode ser traduzido como "sexo",
excluindo crianças e idosos.
Fonte: Espaço Acadêmico/ Geledés Instituto da Mulher Negra
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