* Tradução do artigo Why Black Dolls Matter por Mabia Barros para o Blogueiras Negras
Quando era uma garotinha, Samantha Knowles nunca parou para pensar porque a maioria das bonecas que possuia – American Girl (tem bonecas como a nossa Amiguinha e outros modelos de bebê), Cabbage Patch Kids (são como a Moranguinho), Barbie – eram negras como ela. Mas bonecas negras não eram muito comuns na sua terra natal, o norte do estado de Nova York, cuja população continua avassaladoramente branca. Então quando Samantha tinha oito anos, uma de suas amigas inocentemente a perguntou “Porque você tem bonecas negras?”. E ela não soube bem o que responder.
Mas a pergunta marcou a garota e, na faculdade, ela começou a pensar como ela deveria responder à essa pergunta agora adulta. Finalmente, como uma graduanda em cinema na Universidade Darthmouth, ela conheceu um grupo pequeno mas apaixonado de entusiastas das bonecas negras que costumam colecionar e expor bonecas por todos os Estados Unidos, e para a sua monografia, Knowles, então com 22 anos, concluiu o documentário chamado “Why Do You Have Black Dolls?” (Por que você tem uma boneca negra? – em tradução livre) para articular a resposta.
O que a cineasta do Brooklyn não sabia é que sua mãe queria tanto que as filhas, Samantha e Jillian, tivessem bonecas de sua própria raça, que ela enfrentou longas filas nas lojas e fez encomendas para garantir que ela conseguisse uma das poucas versões negras disponíveis no mercado. “Meus pais fizeram questão de nos dar um monte de bonecas negras com uma gama enorme de estilos e formas”, diz Samantha Knowles. “Nós não tivemos apenas bonecas negras, mas a maioria delas era negra. Depois de começar a trabalhar no filme eu conversei muito com minha mãe e ela dizia ‘Ah, você não imagina o que eu tive que fazer para conseguir algumas dessas bonecas!"
Muitas das entusiastas das bonecas negras, como Debbie Behan Garrett, autora do livro “Bonecas negras: Um Guia Completo para Celebrar, Colecionar e Experimentar a Paixão” (“Black Dolls: A Comprehensive Guide to Celebrating, Collecting, and Experiencing the Passion” – sem tradução no Brasil) sente o mesmo que a mãe de Samantha.
“Sou categórica sobre uma criança negra dever ter uma boneca que reflita quem ela é”, diz Garret. “Quando uma criança pequena está brincando com uma boneca, ela está imitando ser mãe, imitando o que vê em casa, e nos seus mais tenros e impressionáveis anos, eu quero que a criança entenda que não há nada de errado em ser negra. Se as crianças negras são forçadas a acreditar que a pele branca é melhor, ou que seja apenas a ela que tenham acesso, então elas podem começar a se perguntar ‘O que há de errado comigo?’”
O documentário de Samantha Knowles estreou em outubro passado no Reel Sisters of the Diaspora Film Festival na cidade de Nova York, onde ganhou o prêmio Reel Sisters Spirit. No filme, a criadora de bonecas Debra Wright diz que quando as garotinhas veem suas bonecas, elas gritam felizes “Olha só o cabelo dela! É igualzinho ao meu.”
Pesquisas mostram que este ponto de vista sobre bonecas é real. Em 1939 e 1940, os psicólogos negros Kenneth e Mamie Clark conduziram um estudo em que eles mostravam a crianças negras duas bonecas, quase idênticas, exceto que uma era branca, tinha cabelos louros e olhos azuis e a outra tinha pele negra e cabelo preto. Os pesquisadores perguntaram às crianças qual das bonecas era legal, qual das bonecas era bonita, qual das bonecas era inteligente, qual das bonecas elas preferiam brincar, etc., e as crianças majoritariamente escolheram a boneca branca como a que tinha atributos positivos.
Quando a estudante de cinema Kiri Davis conduziu um estudo semelhante com bonecas em 2005 e quando a CNN perguntou a crianças negras sobre desenhos com várias cores de pele em 2010, ambos tiveram um resultado quase idêntico ao estudo de 1940. Mas em 2009, quando foi feito uma réplica do estudo original pelo programa da ABC, Good Morning America, este mostrou mais crianças negras preferindo bonecas negras.
O filme entrevistou uma mulher chamada Debra Britt, que era a única garota negra na sua escola na cidade de Dorchester, Massachusetts nos anos 1950, e que cresceu cuidando de uma boneca bebê branca. Então a avó de Britt se intrometeu e começou a pintar bonecas brancas de marrom para a sua neta, além de ensinar como fazer bonecas africanas de tecido utilizando cabaças e maçãs. “Minha avó vivia repetindo ‘Você não sabe de onde vem e precisa saber.’” Diz Debra. “E então ela me fez uma boneca de pano africana (inspirada em divindades femininas) e me contou a história da população negra.” Hoje em dia Britt comanda o Museu Nacional da Boneca Negra.
Bonecas – feitas à mão para parecer com as crianças que as amam ou com as divindades que seus pais adoravam – são encontradas por todo o mundo, em todas as culturas, todas as raças, desde tempos remotos. Na América (EUA) primitiva, todos, incluindo os escravos, faziam suas próprias bonecas. Nas grandes fazendas do sul, escravos deixavam que seus filhos colocassem um seixo em seus bonecos para representar cada medo ou preocupação e aliviá-los do peso de suas rotinas.
As primeiras bonecas manufaturadas em meados de 1800 foram produzidas na Alemanha e na França, países que dominaram a industrialização de bonecas de porcelana e biscuit no mundo ocidental por décadas. Mesmo as primeiras bonecas norte-americanas tinham cabeças e mãos produzidas na Alemanha.
Não surpreende, então, que o ideal de beleza branco aristocrático da Europa tenha monopolizado o mundo das bonecas, apesar de ocasionalmente bonecas negras aparecerem entre as “belezas exóticas” de dançarinas ou personagens de ópera. Apesar de os escravos terem sido libertos em 1860 nos Estados Unidos, a maioria das famílias negras não podiam pagar pelas bonecas de porcelana europeias, que eram um item de luxo disponível para os muito ricos.
Os objetos que representam caricaturas racistas hoje conhecidas como “blackamore” ou “black Americana” cresceram no pós-guerra civil com os shows dos chamados “black faces”, onde afro-americanos eram mostrados como simplórios, com cabeças grandes parecidas com melancias achatadas, olhos arregalados e lábios vermelhos bem grandes. Essas caricaturas foram parar em livros infantis, como a série britânica “Golliwogg”, que continha várias black faces, que inclusive se transformaram em bonecos. A empresa de bonecos e livros infantis The Nancy Ann Storybook Doll Company fez personagens da história “A cabana de tio Tom” e a Reliable Doll Company foi uma das muitas que fez a Topsy, cuja característica principal era três nós de cabelo.
Mas ainda em 1910, ativistas precursores dos direitos civis Marcus Garvey e R.H. Boyd estavam brigando contra estes estereótipos. Boyd começou a sua companhia nacional da boneca negra (National Negro Doll Company) em 1911, importando porcelana fina europeia na cor marrom e vendendo nos Estados Unidos até que a empresa faliu em 1915.
O final da 2ª Guerra Mundial levou aos Estados Unidos um boom de empresas de produção de plástico desenvolvido durante a guerra. De repente, bonecas de vinil e plástico duro eram baratas e fáceis de produzir nas fábricas. Mas para a produção em massa de bonecas de plástico era tão simplificada que, para os empresários, fazer moldes especiais com características afro-americanas era um custo desnecessário. É por isso que as bonecas de plástico e vinil eram brancas. As bonecas negras que eram vendidas por empresas como Horsman ou Terri Lee eram na maior parte das vezes bonecas brancas pintadas de marrom. “Você não podia olhar para a boneca e classificar como uma representação verdadeira de uma pessoa negra”, diz Garret. “Por que era apenas uma versão marrom de uma boneca branca.”
A única exceção para a regra da boneca branca pintada de marrom nos anos 1950 era a Sara Lee, que foi criada por uma mulher branca chamada Sara Lee Creech, que tirou mais de 500 fotografias de crianças negras para que a sua boneca tivesse o rosto correto. Ideal Toy Company vendeu a boneca de vinil entre 1951 e 1953, mas estas são quase impossíveis de achar agora.
A boneca de vinil mais famosa, Barbie, que apareceu para o mundo em 1959, ganhou uma prima chamada Francie em 1966, explica Britt. Em 1967 a Mattel produziu a boneca Francie como uma mulher negra, mas ela não vendeu bem. Em 1968 a Mattel fez outra boneca negra, Christie, provavelmente feita por uma alteração no molde da amiga branca da Barbie menos glamorosa, Midge, que foi aceita como companheira da Barbie. Em 1969 eles apresentaram a Julia, inspirada no programa de TV “Julia”, em que Diahann Carroll interpretava uma enfermeira negra viúva. Foi só em 1979 que a Mattel se sentiu segura o suficiente para lançar uma Barbie oficial com a pele negra.
Desde a década de 1990, opções para pais que queiram comprar bonecas negras para suas filhas tem sido levemente estreitas. Houveram alguns esforços nobres, incluindo a Big Beautifil Doll, a primeira boneca gorda (full-figured), criada por Georgette Taylor e Audrey Bell em 1999; o desiner negro Byron Lars do African American Barbies, para a coleção de Barbies negras feitas entre 1997 e 2010; e a linha So In Style da Stacey McBride-Irby para a Mattel, lançada em 2009. Stacey passou a lançar o The One World Doll Project, com bonecas para brincar e para exposição multiculturais. Já em 2003, Salome Yilma liderou a fundação das EthiDolls, que eram feitas baseadas na imagem de mulheres africanas que foram líderes históricas e vinham com um verdadeiro livro com histórias de vida.
O museu de bonecas negras (The Black Doll Museum) utiliza bonecas para educar os visitantes sobre os momentos sofríveis e os inspiradores na história negra americana, que contém lições para americanos de qualquer raça. A mensagem é similar a do documentário de Samantha Knowles, “Why Do You Have Black Dolls?”: Porque bonecas nos dizem quem somos.
Veja o trailer do documentário:
Fonte: Blogueiras Negras
em 16 abr, 2013
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